Nota à Imprensa: Redação do Enem 2017 aborda o tema sobre Educação para Surdos no Brasil e abre as portas para debate
O tema proposto para a prova de Redação do Exame Nacional do Ensino Médio – Enem 2017 (Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil) foi, ao mesmo tempo, uma grande alegria, que causou euforia na Comunidade Surda Brasileira, mas também deu margem a inúmeras dúvidas e críticas. Por um lado, os surdos usuários de língua de sinais se viram representados e valorizados em âmbito nacional, por outro, tal exposição gerou críticas em relação aos motivos que levaram o Inep à escolha do tema e à acessibilidade dos próprios surdos ao Exame. À primeira vista, tornar visível o problema da educação de pessoas surdas no mesmo ano em que pela primeira vez o Enem é traduzido para Libras e disponibilizado aos candidatos surdos através de vídeo para que realizem a prova em sua primeira língua, é algo a comemorar. Mas é preciso lembrar que a prova de Redação, instrumento de aferição das habilidades linguísticas através da escrita, ainda não é totalmente adequada aos surdos. Enquanto os ouvintes têm a possibilidade de produzir um texto escrevendo em sua língua primeira, a língua portuguesa, aos surdos ainda é vedada a produção textual em Libras. Isso seria possível realizando uma prova de redação filmada, em língua de sinais, específica para os candidatos surdos.
Vale lembrar brevemente que a conquista da prova traduzida para Libras é fruto de uma história de luta que envolve, há décadas, o Grupo Feneis – Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos, enquanto entidade representativa de máxima da Comunidade Surda em nosso país, bem como o empenho de universidades e institutos federais, através da participação de profissionais e de pesquisadores surdos e ouvintes com ampla experiência na área da educação de surdos, assim como associações e sociedades de surdos, escolas de surdos, familiares e educadores, bem como surdos e surdas de todo o território nacional. Sendo assim, acredito que a iniciativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep ao propor, em um exame de amplitude nacional com expressivo número de candidatos, discutir a temática da pessoa surda, para além de inovadora, foi uma escolha que acompanha a atualidade do movimento social dos surdos, assim como outros temas utilizados em edições anteriores também o fizeram.
De fato, é possível que muitos candidatos tenham apresentado ideias equivocadas sobre o tema, mostrando desconhecer a temática, pois é ainda muito comum as pessoas pensarem em nós surdos a partir do rótulo de “deficiente”, na lógica binária das marcas que separam os diferentes a partir de um juízo valorativo, do ponto de vista do ser normal (e superior) contra o anormal (e inferior) – enfim, ideias equivocadas que habitam o senso comum.
Nesse sentido, a importância do tema da prova de Redação do Enem também abre espaço para dúvidas quanto aos motivos dessa escolha. No Brasil, pelo menos nos últimos 15 anos, o Ministério da Educação – MEC vem tentando impor uma perspectiva de educação inclusiva. Algo amplamente aceito e difundido no imaginário e no ethos contemporâneo a partir das noções de convivência e aceitação das diferenças, a educação inclusiva pode e deve ser relativizada conforme as especificidades dos grupos considerados. É claro que a convivência entre os diferentes deve ser favorecida e sem dúvida produz efeitos positivos nas vidas dos educandos. Porém, quando se trata de pessoas surdas, cuja diferença se evidencia na forma de comunicação, é preciso que esses sujeitos estejam aptos a se comunicar em língua de sinais, portanto, devem conviver com falantes nativos dessa língua, em ambientes onde possam se realizar como sujeitos capazes de se reconhecer enquanto cidadãos, comunicando-se e aprendendo de maneira fluída. Vê-se que, para os surdos, a aparente solução pela via da comunhão das diferenças proposta pelas políticas inclusivas acaba tendo o efeito contrário, pois os exclui da escola no momento em que nega ou desvaloriza as propostas educacionais que primam pela Libras como primeira língua no espaço escolar.
Talvez o tema da prova do Enem 2017 possa, pelo fato de ser ainda assunto desconhecido pela maioria dos jovens oriundos do Ensino Médio, ser uma saída encontrada pelo Inep de apresentar uma temática de extrema relevância nas políticas educacionais e sociais, porém, sem gerar polêmicas, sem tocar em temáticas mais popularizadas pela mídia, esquivando-se das polarizações que afetam outros temas que poderiam ter sido eleitos para o certame, como violência, desarmamento, sexualidade, etc. De qualquer maneira, o Grupo Feneis se coloca firmemente ao lado dos movimentos sociais, trazendo à luz o fato de que tematizar a educação de surdos não consiste numa solução isenta de criticidade, pelo contrário, pois aí podemos ver ressoar questões de fundo das lutas culturais contemporâneas e dos males que afetam nossa frágil democracia.
Foi graças à mobilização das Comunidade Surda, representada pelo Grupo Feneis, que a prova do Enem 2017, pela primeira vez, foi aplicada aos candidatos surdos no formato vídeo gravado em Libras. Isso é um avanço sem precedentes. Porém, a partir disso, é possível que a sociedade brasileira perceba que existem muitas outras lutas dos surdos e de outros grupos sociais aos quais estamos alinhados. A nossa luta é pela plena participação dos cidadãos surdos na sociedade, mas que essa sociedade seja democrática, justa e igualitária.
Rio de Janeiro, 8 de novembro de 2017.
Prof. Dr. André Ribeiro Reichert
Diretor de Política Educacional
Grupo Feneis